Ontem, dia 15 de setembro, eu desfiz 75 anos…

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Minha formação filosófica impõe-me o uso preciso das palavras porque as palavras devem revelar o ser. E é assim, usando de forma precisa as palavras, comunico aos meus leitores que ontem, dia 15 de setembro, eu desfiz 75 anos… Haverá leitores que se apressarão a corrigir meu uso estranho, nunca visto, da palavra ‘desfazer’, atribuindo-o, quem sabe, a um início do mal de Alzheimer. Todo mundo sabe que, para se anunciar um aniversário, o certo é dizer ‘fiz’ tantos anos. No meu caso, ‘fiz’ 75 anos… Mas o verbo ‘fazer’ sugere algo que aumenta um crescimento do ser, o artista e o artesão ‘fazem’… Mas, que ser aumenta com a passagem do tempo, esse monstro que devora os seus filhos? O que aumenta é o vazio. Esses anos que o aniversariante distraído anuncia como anos que ele fez são, precisamente, os anos que ele desfez, o tempo que já passou, que deixou de ser, os anos que o tempo devorou.

Por isso acho um equívoco filosófico perguntar a alguém: ‘Quantos anos você tem?’ O certo seria perguntar ‘quantos anos você, não tem’. E ela responderia ‘não tenho 42 anos’, ‘não tenho 28 anos’. Porque esse número de anos indica precisamente os anos que ela não tem mais.

Nos aniversários, então, a maneira correta de se dirigir ao aniversariante é perguntando-lhe ‘quantos anos você está desfazendo hoje?’

Com base nessas reflexões filosóficas acho extremamente estranho e mesmo de mau gosto esse costume de o aniversariante soprar as velinhas acesas para que elas se reduzam a um pavio negro retorcido. Aí, nesse momento, todos gritam e riem de alegria e cantam o ‘Parabéns pra você’, em louvor a essa ‘data querida…’

Bachelard, no seu delicadíssimo livro ‘A Chama de uma Vela’, que nunca será best-seller, nos lembra que uma vela que queima é uma metáfora da existência humana. Há alguma coisa de trágico na vela que queima: para iluminar, ela tem que morrer um pouco. Por isso ela chora, e suas lágrimas escorrem sobre o seu corpo sob a forma de estrias de cera.

Uma vela que se apaga é uma vela que morre. Algumas velas se consomem todas, morrem de pé, têm de morrer porque a cera já se chorou toda. Outras morrem antes da hora – elas não queriam morrer -, mas veio o vento e a chama se foi.

As velinhas acesas fincadas no bolo não querem morrer. Elas vão ser assassinadas por um sopro. O sopro que apaga as velas é o sopro que apaga a vida…

Por isso não entendo os risos, as palmas e a alegria que se segue ao sopro que apaga as velas. Uma vela que se apaga é um sol que se põe, disse Bachelard. E todo pôr-do-sol é triste… Uma vela que se apaga anuncia um crepúsculo.

Por isso eu prefiro um ritual diferente, ritual que é uma invocação. Eu acendo uma vela pedindo aos deuses que me dêem muitos anos a mais de vida, esses anos que se seguirão, que são o único tempo que realmente possuo…

Assim fiz, acendi uma vela, meus amigos à minha volta. Que coisa boa é ter amigos, especialmente quando o crepúsculo e a noite se anunciam!

Acho que a vida humana não se mede nem por batidas cardíacas n em por ondas cerebrais. Somos humanos e permanecemos humanos enquanto estiver acesa em nós a esperança da alegria. Desfeita a esperança da alegria, a vela se apaga e a vida perde o sentido. 16/09/2008

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